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25.4.06

Trilhos e sonhos...

Cheguei a Alice às cinco da manhã, com um cão, seis dólares e uma pequena mala de viagem cheia de roupas inadequadas. A brochura dizia: "Traga uma casaco de malha para as noites". Um vento gelado fazia rodopiar a poeira na plataforma e fiquei ali de pé, a tremer de frio, com um cão quentinho ao colo, perguntando a mim própria que loucura me havia trazido a esta estação sinistra e deserta nos confins do mundo. Virei-me contra o vento e vio contorno das montanhas para lá da cidade. Há alguns momentos na vida que são como eixos em torno dos quais a nossa existência gira.

E mais adiante:


Na Austrália, podemos andar durante meses sem encontrar um único ser humano. Milhares de quilómetros vazios de pegadas, libertos dos erros da História. Através da minha ligação aos seus habitantes originais, aprendera a ver esses desertos como um jardim – como o lar primordial do homem, antes da invenção do arado. Os trilhos dos antepassados tinham-nos cartografado, conferindo-lhes sentido, de tal maneira que, ainda que um indivíduo caminhasse para muito longe do seu local de origem, no mais profundo dos sentidos, essa pessoa estaria sempre em casa no mundo.


E segue assim Robyn Davidson no livro Trilhos que peguei esta noite para adormecer. Em vez de adormecer fui pelo deserto fora de novo com a Robyn, com uma força tremenda que me contagiou. Trilhos e sonhos.

PS: Encontrei por acaso um texto de Maria Eduarda Keating que coloca em contexto interessante os livros da Robyn Davidson ao falar da escrita como trajecto nómada.

24.4.06

A percepção da realidade


Cada vez mais me convenço de que as teses dos construtivistas radicais se justificam: não temos de facto acesso ao mundo, à 'realidade', mas apenas à nossa percepção e à nossa relação com essa 'realidade'. Daqui decorre que a realidade não existe, as coisas não existem, as coisas são o seu uso (por nós). Vem isto a propósito de duas coisas: primeiro, da chegada da Primavera à dispinibilidade e aos apetites renovados; é sempre bom senti-los e isso é altamente construído pelo corpo (isto é, pela nossa percepção do corpo) e pela percepção que temos do mundo social. Segundo, daquilo que quotidianamente alimenta as notícias - a situação económica. Não existe literalmente uma coisa chamada situação económica, existe sim uma 'realidade' fabricada com os modelos matemáticos escolhidos (por quem tem o poder de os escolher) para conduzir mais ou menos os fluxos entre os grupos sociais. Nem mais.

23.4.06

Fala, gesto e mente

O gesto e o discurso estão intimamente ligados nos adultos. Quando as pessoas falam e gesticulam ao mesmo tempo o passo do gesto e da fala é o mesmo - há completa sincronia. A relação temporal entre uma coisa e outra é tão grande que quando há hesitação na fala, essa hesitação é simultânea no gesto. E a análise do desenvolvimento das crianças mostra que elas tendem a iniciar o gesto sem acompanhamento de fala e mesmo quando as primeiras tentaivas de fala se dão a sincronia com o gesto ainda é imperfeita. mas ela aperfeiçoa-se à m,edida que o significado da fala se desenvolve. É impressionante como os humanos adquirem a forma de vida a que nos habituámos no dia-adia e em que já não reparamos. Mas mais do que isso, é impressionante como a linguagem corporal (de que em geral não temos consciência) 'fala' por nós muitas vezes acompanhando a fala e muitas vezes acontecendo por si só - ou melhor, sincronizada com a conversação interna. A observação das pessoas em locais públicos (onde obviamente é lícito observá-las), dos seus gestos mais pequenos, da sua fala, permite reconhecere intencionalidades, e mais que isso, permite perceber um pouco como pensam.
É essa autêntica porta para a mente que me seduz.

Tudo isto a propósito da leitura diária do Goffman em Forms of Talk (University of Pennsylvania Press, 1981) mas que cruza com a perspectiva corporizada da cognição que decidi revisitar (depois de alguns anos de banho-maria) através de novo do livro The Embodied Mind (F. Varela, E. Thopmson e E. Rosch, MIR Press, 1995) .


E isto lembrou-me ir reler o livro do Rafael Núñez e George Lakoff - Where mathematics comes from - mas falo disso aqui um dia destes.

21.4.06

Custo da guerra do Iraque

Os custos da guerra são sempre incalculáveis - diz-se. Mas vale a pena fazer alguns cálculos possíveis dentro do conhecimento público que existe sobre a situação. É o caso da guerra do Iraque. Deixo aqui activo um contador de custos. E uma vez mais a quantificação sugere uma medida do esforço humano que não é suficiente para se perceber a realidade da guerra.

5.4.06

Se não sabe, porque é que pergunta?

João dos Santos tinha esta observação muito pertinente "Se não sabe, porque é que pergunta?" que encerra uma noção de conhecimento que partilho - não algo que corresponda a um estado mas como um processo - conhece-se conhecendo.
E é o carácter situado e parcial do conhecimento que é preciso analisar para reconhecer que as aprendizagens escolares são obviamente contextualizadas (na escola) e que é nesse sistema de actividade que as práticas (escolares) têm lugar - com todas as consequências que isso tem para as pessoas envolvidas (professores, alunos, pais, educadores, funcionários, Ministério da Educação, investigadores).
Estas questões do conhecimento e das formas como lidamos com o conhecimento, como o situamos, como o reconhecemos no nosso dia-a-dia, como o fabricamos, são questões que não são menores quando se pensa, e se aposta, na sociedade do conhecimento.

Nota: O direito à opinião é reconhecido a todos em todos os assuntos. Mas quando essas opiniões se tornam em autênticas confissões públicas de ignorância sobre matérias da educação - apresentadas com todas as certezas do mundo e soba capa de um cientismo de fragilidade notória - a situação torna-se confrangedora (veja-se os casos recentes de pelo menos um livro e vários artigos publicados em jornais de grande circulação a pretexto do "eduquês" como o demónio da educação em Portugal).

2.4.06

As certezas...

"A ideologia da certeza designa uma atitude relativa à matemática. Refere-se a um respeito demasiado pelos números. Esta ideologia reclama que a matemática, mesmo quando é aplicada, dará origem a soluções correctas que são seguras por via da sua certeza matemática. A "certeza" da matemática (pura), seria de algum modo transferida para a "certeza" das soluções dos problemas. A matemática é assim entendida como a ferramenta adequada para resolver uma variedade de problemas quer do dia-a-dia quer de natureza tecnológica. Este princípio tem raízes óvias numa corrente da filosofia da matemática mas também na matemática escolar (da sala de aula). A ideologia da certeza representa um elemento dogmático que é alimentado em geral pelo ensino da matemática, mas não (espera-se) por todas as suas formas". (Skovsmose, 2005, p.48).

Esta é uma citação do livro recente de Ole Skovsmose (traduzida por mim) Travelling Through Education: uncertainty, mathematics, responsibility (Editora Sense Publishers) que inicia um capítulo sobre a Matemática em Acção em que o autor reflecte sobre a ideologia da certeza e a realidade virtual criada com uma visão dogmática da realidade assente em pressupostos rígidos acerca da bondade da matemática. Para não deixar de ler. E reflectir no que fazemos como educadores e professores de matemática nos dias de hoje.

Mais uma vez historicamente nos vemos confrontados neste data com desafios na acção e na política de curto prazo com conceitos, representações, intencionalidades, no campo da educação e da formação, que parecendo por vezes convergir, traduzem filosofias, teleologias, e sentidos contraditórios. Como ultrapassar tal confronto?*

*Pedi este parágrafo emprestado a Teresa Ambrósio em A Complexidade da adaptação dos processos de formação e de desenvolvimento humano, in Formação e Desenvolvimento Humano: Inteligibilidade das suas Relações Complexas, MCX/APC-Atelier nº34, 2004, p.32.

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