No meio de uma visita ao Oceanário de Lisboa. E uma inundação da sensação de estar 'de fora'. Sermos capazes de nos colocar do lado de lá é muito complexo. Sair da pele e 'olhar de fora' - perguntar 'mas o que é isto? esta coisa onde estou? estou?! o que quer dizer estou?' e de seguida sentir uma vertigem enorme como se se estivese a entrar em território vazio. Não dá para explicar. Mas é uma sensação ambígua de prazer e de terror. É como habitar outro. Outro tudo.
Aí ele chamou-me à Terra: "Agora nós eramos peixes, eu era o tubarão e..."
É fascinante o mundo das crianças (ou o mundo como elas o constroem).Não é só porque tudo ganha vida mas também porque é uma visa que vive com elas e que cresce e se desenvolve à sua medida. É por isso que tuod serve para brincar e que os objectos (mesmo aqueles que têm objectivamente um significado intencional) são literalmente extensões da mente das crianças.
É preciso não esquecer de como é brincar, e de brincar.
"Era uma vez um país onde tudo era proibido. Ora como a única coisa não proibida era o jogo do mata, os súbditos reuniam-se em certos campos que ficavam por detrás do país e aí, jogando ao mata passavam os dias. E como as proibições vieram umas de cada vez, sempre por motivos justificados, não havia ninguém que achasse mal ou não soubesse adaptar-se. Passaram os anos. Um dia os notáveis do país viram que já não havia razão para que tudo fosse proibido e mandaram arautos avisar os súbditos de que podiam fazer o que queriam. Os arautos foram aos locais onde costumavam reunir-se os súbditos. - Saibam - anunciaram - que já nada é proibido. Eles continuaram a jogar ao mata. - Não perceberam? - insistiram os arautos. - São livres de fazerem o que quiserem. - Muito bem - responderam os súbditos. - Nós jogamos ao mata. Os arautos bem se afadigaram a recordar-lhes todas as ocupações boas e úteis que haviam tido no passado e poderiam ter novamente de agora em diante. Mas eles não ligavam e continuavam a jogar, um lance a seguir ao outro, sem pararem sequer para ganhar fôlego. Vendo que as tentativas eram vãs, os arautos foram dizê-lo aos condestáveis. - Resolve-se bem - disseram os condestáveis. - Proibimos o jogo do mata. Foi então que o povo fez a revolução e os matou a todos. Depois, sem perder tempo, tornou a jogar ao mata."
(Italo Calvino, Quem se contenta, em A Memória do Mundo, 1993, Editorial Teorema)
Pois é, a força da conformidade é tremeda e muito dificilmente escapável. Resta resistir.